Nos últimos dias estive no Rio de Janeiro por ocasião do II Urbfavelas (II Seminário Nacional sobre Urbanização de Favelas). Esta foi a segunda vez que estive na cidade. Na primeira, há exatos três anos, fui como turista. Conhecer a cidade maravilhosa foi como ter a alma cantando em meio à bossa nova de Jobim. Como não se apaixonar pelo Rio? Por sua paisagem, arquitetura, e pela simpatia de seu povo. Desta vez a experiência foi mais intensa, talvez pela relação com tudo o que foi debatido durante os quatro dias de seminário, talvez pela situação crítica que vive o estado do Rio de Janeiro, ou até mesmo pelos fatos ocorridos durante minha estada no local.
Vou me permitir fazer um relato muito mais pessoal do que técnico sobre o seminário e os acontecimentos que o acompanharam. Primeiramente, o seminário representou a oportunidade de ouvir e debater com pesquisadores e profissionais de diversas formações e de todo o país as limitações e perspectivas das intervenções em favelas. Além disso, me permitiu compartilhar um pouco de minha pesquisa na área, levantando importantes contribuições para sua continuidade.
Diferente de sua edição anterior, que aconteceu em 2014, na UFABC, em São Bernardo do Campo, o II Urbfavelas contou com a participação de novos agentes, representados pelos movimentos sociais e moradores de favelas, muitas vezes também acadêmicos. As falas deste público trouxeram um contraponto à visão dos pesquisadores, nos levando a repensar conceitos e estratégias de intervenção.
Foi impossível não notar uma postura defensiva nas falas dos moradores de favela. Parece que há uma constante tentativa de mostrar a favela, não como problema, mas como um modo de vida característico, reforçando sua permanência e questionando a necessidade das intervenções. Por outro lado, também estava presente a busca por melhores condições de vida e acesso aos serviços disponibilizados no “asfalto”, historicamente negados a esta parcela da cidade.
A postura dos moradores de favela parece refletir a posição de uma população constantemente ameaçada pelos processos de remoções arbitrárias, talvez muito mais presentes no Rio, palco principal dos megaeventos, do que em qualquer outra cidade brasileira. Como colocado por Raquel Rolnik na mesa de abertura, a favela deixou de ser o espaço de moradia do exército de reserva da produção industrial para ser reserva de terras para expansão do capital. Neste sentido, as favelas cariocas, principalmente aquelas localizadas em áreas valorizadas da cidade, emergem como alvo central do mercado imobiliário.
Dentre as atividades culturais que acompanharam o seminário a mostra de vídeos foi uma agradável surpresa. Um dos títulos apresentados, 5x Favela – Agora por nós mesmos (2010), longa composto por 5 histórias retratando a vida nas favelas e dirigido por moradores do local, me emocionou. Ao contrário dos filmes mainstream sobre favelas, onde o tema da violência se sobressai, 5x Favela retrata a favela com delicadeza e humor, algo que só poderia ser construído de dentro para fora. Conforme relato de um dos cineastas, Luciano Vidigal, presente no debate, a intenção foi mostrar a favela de forma que os moradores pudessem se identificar. A configuração física da favela e seus entraves também se expressa no filme através do congestionamento domiciliar, da dificuldade de acesso nas vielas e escadarias e nas barreiras entre um e outro assentamento.
Ao fim do último dia de mesas e sessões temáticas, ao voltar para o hotel, resolvi conhecer a catedral de São Sebastião, na região da Lapa. Ao encontrá-la fechada decidi visitar os arcos. Caminhei brevemente pela praça e, no caminho de volta, fui abordada por dois rapazes gritando:
– Passa a bolsa moça. Passa a bolsa!
Não consegui identificar se eles estavam armados ou não, mas, na dúvida, achei melhor não arriscar e pedi somente que deixassem os documentos. Um dos rapazes respondeu à minha solicitação dizendo: “Vou jogar ali atrás”, antes de sair correndo, retornando à praça. Voltei ao local na tentativa de resgatar os documentos mas, talvez pela falta de entendimento de onde seria “ali atrás”, não consegui encontrá-los.
A noite seguiu com uma visita à 5ª Delegacia de Polícia do Rio de Janeiro. Enquanto aguardava para fazer o Boletim de Ocorrência observei os dramas que ali se desdobravam: a senhora que tentava conseguir com um agiota o dinheiro para pagamento da fiança do marido; a moça presa por tráfico de drogas junto ao filho menor de idade; o menino preso, não sei por que motivo, que alegava ter sofrido violência por parte dos policiais. Fui muito bem atendida pela polícia, que costuma me passar mais a sensação de medo do que de segurança. Ao final do registro da ocorrência o policial pediu que eu verificasse as informações anotadas. Um item me chamou a atenção, minha cor foi declarada como branca. Disse ao policial que me considerava parda e não branca e ele então tentou justificar que o fator preponderante não era exatamente a cor da pele. Percebi, então, que os traços herdados da parte europeia da família e os cabelos alisados me colocavam na posição de branca, e talvez fosse isso o que realmente me diferenciava das outras pessoas que estavam ali, “quase todos pretos, ou quase brancos quase pretos de tão pobres[1]”.
Apesar da tristeza com o incidente me senti amparada de várias formas: pela família, através do querido marido que me assessorou de longe; por amigos que também estavam no Rio por ocasião do seminário; pelo Estado, por meio da polícia, e até mesmo pelo grande capital, no papel das instituições bancárias que me informaram todos os direitos e garantias vinculados aos serviços por eles prestados – alguns que eu desconhecia – privilégio da pequena parcela da população que tem algum dinheiro para guardar. Me perguntei então: Quem ampara a população pobre? Quem ampara os moradores de favela? Quem ampara os rapazes que me assaltaram? E, no final da noite, já não estava mais claro quem era, de fato, a vítima.
No dia seguinte, último dia do seminário, ocorreram as visitas de campo. O roteiro selecionado foi o do Subúrbio: Alemão e Manguinhos. A visita ao Alemão foi cancelada já nos primeiros dias do evento, devido aos tiroteios ocorridos em diversas favelas cariocas no final de semana anterior. A proposta era visitar então, somente Manguinhos. Porém, na manhã da visita, ocorreu um assassinato no local e o roteiro ficou restrito somente às áreas de provisão do PAC, parte do complexo, além da observação dos assentamentos pelo campus da Fiocruz.
Nossa frustração com a impossibilidade de visitar as áreas se completou ao conhecermos os equipamentos implantados pelo PAC. As intervenções do PAC em Manguinhos, sem entrar na discussão da qualidade dos projetos, apresentam todos os elementos que os arquitetos e urbanistas sempre sonharam para um projeto de urbanização integrada de favelas, no entanto, quase nada funciona. A escola não atende à capacidade de alunos prevista e está em processo de degradação; a piscina não pode ser usada por falta de manutenção; o cinema 3D não foi apropriado pela população; o escritório de assessoria jurídica nunca teve profissionais que se dispusessem a trabalhar no local; o centro de juventude foi fechado e a biblioteca parque está sob ameaça de fechamento; as vias e espaços livres do entorno são utilizadas por usuários de drogas, o que inibe o uso pelos moradores dos conjuntos; os quiosques destinados ao comércio foram fechados, alugados ou adaptados para uso como moradia e grande parte da demanda original já não habita mais as unidades produzidas pelo programa. O tráfico de drogas, muito presente no complexo, parece ter limitado a participação da população nas decisões do projeto, que talvez pudesse ser mais adequado à realidade da área se tivesse sido amplamente discutido. Quanto aos equipamentos – cinema, biblioteca, centro da juventude e outros – apesar de apresentam propostas interessantes, requerem gestão e recursos contínuos, demanda que o Rio de Janeiro não parece em condições de atender. Em resumo, um cenário bem triste para nós, agentes que lidam com as favelas, que temos o PAC-UAP (e não sabemos por quanto tempo) como principal instrumento para a urbanização destes assentamentos.
Com o fim do seminário aproveitei meu último dia no Rio para visitar o Porto Maravilha. A área renovada e com a presença dos lindos projetos de Calatrava e Bernardes e Jacobsen perdeu um pouco do seu brilho após a experiência dos dias anteriores. Afinal, a quem se destina a renovação urbana do Rio de Janeiro? Parece que a lógica que constrói a cidade maravilhosa dos megaeventos é a mesma que promove remoções arbitrárias e contribui para a violência nas favelas, vista a experiência falida das UPPs. Nada que eu já não tivesse tomado conhecimento antes, mas que, de certa forma, era mais cômodo ignorar.
Na fila para o Museu do Amanhã me atentei à conversa da família a minha frente que debatia sobre o melhor museu a visitar, MAR (Museu de Arte do Rio) ou Museu do Amanhã. O vendedor de sorvetes que passava ao lado interveio na conversa:
– Esse daqui é do futuro, das coisas que ainda vão acontecer. O outro é muito mais legal!
Pois é! O passado, principalmente o retratado pela arte, nos traz algum alento, enquanto o futuro, por ser desconhecido, é sempre assustador. E num período de crises, atentados à democracia, desigualdades e injustiças sociais, que futuro se reserva para o Rio e para as favelas?
Embora as perspectivas sejam desanimadoras, faço minhas as palavras de David Harvey ao falar sobre a conjuntura atual[2], e prefiro (e preciso) acreditar que ainda “podemos construir um mundo muito, muito melhor.”
[1] Haiti – Caetano Veloso
[2] http://www.cartacapital.com.br/internacional/201cnao-acredito-que-temer-tera-forca-politica-por-muito-tempo201d